Por Dr. Arlindo Monteiro de Carvalho Junior
MÉDICO CRM-PB: 4513
Urologia RQE Nº: 2471
Cirurgia Geral RQE Nº: 2472
Noticias recentes dão conta de que o primeiro transplante de bexiga humana foi realizado em 4 de maio deste ano, nos Estados Unidos (EUA). O receptor é um homem de 41 anos chamado Oscar Larrainzar, cuja bexiga original havia sido acometida por uma neoplasia rara, levando a perda de sua função e, consequentemente, às complicações relacionadas. O paciente em questão recebeu, simultaneamente, uma nova bexiga e um novo rim, que foram implantados por cirurgiões da Universidade do Sul da Califórnia (USC) e da Universidade da California em Los Angeles (UCLA).
Trata-se, sem dúvidas, de momento histórico protagonizado pela equipe capitaneada pelos professores Nima Nassiri e Inderbir Gill. Para chegarem a esse feito, por cinco anos, foram desenvolvidas novas técnicas, experimentadas em porcos e treinadas em cadáveres humanos.
E porque se trata de feito extraordinário? As doenças da bexiga, especialmente o câncer vesical, desafiam os médicos há séculos, mas se tornaram especialmente importantes com a cultura do tabagismo em massa, adotada a partir no século ado e que moldou muito dos hábitos que temos hoje na sociedade moderna. E o hábito de fumar trouxe consigo males que mais tarde se mostraram desafiadores e custosos para os sistemas de saúde, incluindo não só o câncer de pulmão, mas no âmbito urológico, também o câncer de pênis, o câncer de rim e a disfunção sexual erétil. Não há duvidas de que o maior número de carcinomas uroteliais da bexiga se deve ao cigarro, sendo um dos maiores desafios atuais da especialidade. Encontrar um substituto à altura para uma bexiga danificada que precise ser removida é um grande desafio.
Ora, comumente nem nos damos conta que a bexiga existe, ela funciona, diuturnamente, armazenando e eliminando a urina, e com ela os produtos do metabolismo, sempre que queremos. Nas pessoas sadias, é assim que funciona: levantam cedo para trabalhar, aliviam-se com a primeira micção do dia, seguem suas vidas, alimentam-se, ingerem líquidos ad libidum, experimentam a vontade de urinar, decidem se o fazem de imediato ou suprimem o estímulo e aguardam o melhor momento e o local mais conveniente.
Dia e noite a bexiga está lá, por nós e por nossas necessidades, funcionando, de graça, sem sequer uma lembrança ou agradecimento.
Por sua capacidade de complacência, característica fundamental para o bom funcionamento do órgão, acumula volumes progressivos, o que nos permite adiar, e organizar o ato de urinar. Este, por sua vez, representa a fase de esvaziamento da micção, que se inicia a cada ciclo seguinte, com uma fase de armazenamento. E assim, armazenamento e esvaziamento vesicais seguem em sincronia, nos dando conforto e proporcionando saúde, silenciosamente. A bexiga parece não fazer falta, justamente porque não é notada.
Entretanto, experimentem sofrer de um mal vesical. A situação muda, completamente o incômodo se instala, a vida se torna um martírio, uma súplica eterna. E é isso exatamente o que ocorre. A depender dos sintomas que se instalam, perde-se a capacidade de realizar até as tarefas cotidianas. Imaginem-se portadores de uma simples infecção urinária, uma cistite, em sua fase aguda, urinando com frequência descomunal, ardência e dor em baixo ventre. Se isso já e uma penitência, imaginem ser portador de uma bexiga neurogênica ou uma cistite intersticial, de uma bexiga de baixa complacência. E se a bexiga for obstruída por um problema de próstata ou um estreitamento da uretra, e precisar ser esvaziada através de uma sonda? Sim, são algumas das situações corriqueiras em que o urologista precisa atuar em seu mister de ajudar aos seus pacientes. Muitas situações exigem prescrições complexas, em outras o tratamento cirúrgico se impõe, a exemplo do próprio câncer vesical. Geralmente é nesse contexto que a bexiga “se apresenta” ao seu dono que, a partir de um problema real, a a notar que ela realmente existe e que faz uma enorme diferença para a sua qualidade de vida.
Pois bem, com um sem número de patologias de tratamentos variáveis e por vezes prolongados, não há duvidas de que, em todos os cenários, preservar a bexiga é o melhor caminho, o que nem sempre possível. Algumas doenças, por suas características ou sua agressividade, exigem a remoção cirúrgica completa do órgão. E diante dessa remoção, a necessidade de derivação com reconstrução do trânsito urinário, seja de maneira interna ou de maneira externa, seja de forma continente ou incontinente -quase todas imperfeitas – precisa ser adaptada a cada caso concreto.
Por anos foram desenvolvidas técnicas de derivação urinaria e substituição vesical, a exemplo das Urostomias (a mais conhecida é a clássica de Bricker), da ureterossigmoidostomia, das derivações continentes e das bolsas miccionais ortotópicas, algumas utilizando parte do próprio intestino do paciente para recompor o reservatório de maneira continente, entre outras técnicas menos utilizadas.
Não há dúvidas de que evoluímos, mas preservar o próprio órgão e sua insólita função ainda é um desafio. Evoluímos na abordagem mais conservadora através das ressecções endoscópicas de tumores vesicais superficiais, e também na terapia adjuvante intravesical, através da imunoterapia com BCG ou da quimioterapia com drogas modernas, ambas utilizadas no controle da recidiva neoplásica. Aliás, recidiva e progressão neoplásicas são preocupações constantes quando se opta pela preservação do órgão frente a uma neoplasia que se apresenta inicialmente superficial. Diante de uma bexiga doente, a morbidade decorrente é quase uma regra, agravada quando a perdemos completamente para a doença e a sua remoção se torna inevitável.
Retornamos, portanto, ao grande avanço que significou a possibilidade de substituir a bexiga por uma outra bexiga humana, através do transplante. Apesar dos desafios técnicos vinculados à inervação e vascularização do órgão enxertado no receptor, e os já conhecidos desafios vinculados ao sistema imunológico e a rejeição do órgão transplantado, o que se mostra mais desafiador em órgãos ocos como os do trato digestório, a nova técnica desenvolvida pelos abnegados cientistas abre uma promissora janela de oportunidade para que, em um futuro próximo, possamos contar com mais essa arma em nosso arsenal de manejo e tratamento das doenças vesicais mutilantes.
O tempo e a evolução dos estudos dirão se a bexiga implantada será capaz de assumir todas as suas funções da que foi removida, se o paciente será ou não capaz de sentir a bexiga cheia, segurar a urina e esvaziar sua bexiga naturalmente, dominar o melhor momento para urinar. Neste século, a medicina avança aceleradamente, turbinada pela robótica e pela telemedicina, pelo desenvolvimento de novas terapias e pela inteligência artificial. Em sua essência, feita por seres humanos para seres humanos, baseada na ciência e fiel aos seus princípios éticos, uma reverência aos médicos e seus feitos ao longo da história da humanidade.